quinta-feira, 8 de outubro de 2015

As Casinhas Azuis e Brancas


Fiz engenharia em plena ditadura no Brasil.

Só quem viveu sabe como aqueles tempos foram complicados. Havia, entretanto, coisas boas também, não por causa da ditadura, mas sim em função de meus dezoito, dezenove, vinte anos....

O governo militar havia criado o chamado Projeto Rondon que tinha como objetivo levar no período de férias, estudantes universitários ávidos por trabalhar, por construir algo para a comunidade, para  lugares distantes, no interior do Brasil e lá então permitia a eles a liberdade do servir.

Havia inserido no contexto ideológico do projeto a ideia de que os estudantes mais politizados, líderes, enfim criadores de problemas se ficassem sem atividades, seriam atraídos pela ideia. Isso de fato ocorria.

Fomos nós para o Vale do Jequitinhonha, éramos 34 estudantes de engenharia, além de outros tantos nas áreas de medicina, odontologia, comunicação e serviço social.

O melhor era que havia verbas disponíveis para que pudéssemos realizar obras.

A equipe e engenharia tinha o objetivo de fazer o cadastramento da cidade de Araçuaí. Nosso trabalho consistia em elaborar o projeto de arruamento da cidade, e para tanto, locar topograficamente as propriedades, terrenos, negociando com cada morador, proprietário onde seu terreno começava, terminava procurando o consenso ou estabelecendo um consenso. 

Trabalharíamos por três anos nesse projeto.

Havia a poucos quilômetros de Araçuaí um povoado chamado Virgem da Lapa, na época uma pequena comunidade, talvez, com menos de dois mil habitantes.

Em uma visita observamos que ao contrário de Araçuaí, onde o maior problema estava na oferta de água, ali o problema era o saneamento básico. A situação era tão rudimentar que a solução que observamos foi a construção de fossas secas, as famosas casinhas. A ideia era colocar várias pelo vilarejo e com isso minimizar o problema. Solicitamos o recurso e logo havíamos recebido os materiais além de algum dinheiro para pagar a mão de obra.

Buscando maximizar a construção das fossas criamos um consórcio onde a mão de obra era da população em mutirão com nossa ajuda e isso permitiu que fizéssemos 25 fossas em 2 semanas. No início dos trabalhos observamos que sobrariam materiais e também recursos financeiros e assim resolvemos realizar uma pequena reforma na igreja e uma recuperação na praça da Matriz, afinal ali era Virgem da Lapa.

Assim fizemos sempre com ajuda da população. Finda as duas semanas, havíamos construído as fossas e casinhas, recuperado a praça da Matriz, e uma pequena reforma na Igreja que foi pintada de azul e branco. Sobrou tinta e aí tivemos a brilhante ideia de pintar também as casinhas das fossas com o azul e o branco. Tudo ficou pronto.

O sol amanheceu lindo naquele domingo, havíamos conseguido um padre que rezaria a Missa inaugural e benzeria toda a cidade. Havia um autofalante em corneta na praça e tudo foi maravilhoso. Terminou com Missa, alguns batizados, casamentos e ao final o padre benzeu a Igreja, a praça, os fiéis, as casinhas das fossas, as casas, a lavoura...

Fomos todos embora felizes.

Passados seis meses voltamos a Virgem da Lapa para uma visita de cortesia e fomos surpreendidos ao observar que as casinhas, protetora das fossas, azuis e brancas, tal qual a Igreja, estavam absolutamente limpas sem quaisquer vestígios de uso.

Aí nossas fichas caíram. Elas eram iguais a Igreja, foram benzidas... Ações absolutamente inadequadas para o uso do empreendimento.

Imediatamente, solicitamos verba e as pintamos de marrom. Aí obtivemos sucesso.

Aprendemos muito no Projeto Rondon.

É preciso ter em mente que a elaboração de um projeto de sucesso exige mais do que um grupo empenhado, exige mais do que recursos financeiros, mais do que tempo, ela exige experiência.

A experiência, segundo Confúcio, é uma lanterna colocada em nossa cabeça só que voltada para trás, iluminando o caminho que já trilhamos.

A construção de um projeto pressupõe uma equipe onde saberes diversos devem estar contemplados e isso é incumbência da liderança.

Eu coordenava uma equipe de estudantes engenharia com o pragmatismo absoluto voltado para executar o necessário. Nosso lema era “não viemos para fazer o que é possível, viemos para fazer o que precisa ser feito”, e deu no que deu.

Faltou-nos a bagagem da experiência ou o pragmatismo do conhecimento específico. Deveria existir um manual onde nos ensinasse como tratar uma comunidade, erros e acertos.


Foi mais ou menos isso que aconteceu e sempre será uma feliz lembrança as duas semanas em Virgem da Lapa.

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